Vida & Obra


Almeida Garrett

por Jane Tutikian*

João Leitão da Silva, segundo filho do selador-mor da Alfândega do Porto, nasceu naquela cidade em 4 de fevereiro de 1799. Em 1809, aos dez anos de idade, partiu, devido às invasões das tropas de Napoleão Bonaparte, para a Ilha Terceira, nos Açores, onde a família tinha propriedades. Aos dezessete, entretanto, em plena adolescência, voltou à Península para estudar Direito na Universidade de Coimbra. Essa foi uma experiência muito rica para o jovem, uma vez que aí entrou em contato com as ideias liberais, que o marcariam até o fim de sua vida. Aliás, foi também em Coimbra que adotou o nome Almeida e o sobrenome da avó paterna: Garrett.

Em 1821, editou a sua primeira obra, o poema “O retrato de Vênus”, que foi considerado materialista, ateu e imoral pela censura e que fez com que fosse processado. Foi também nesse ano que viu encenada a sua tragédia Catão, um drama construído à maneira clássica.

Envolvido nas lutas liberais, Almeida Garrett teve de exilar-se na Inglaterra quando houve a Vila-Francada, o golpe militar de Dom Miguel pela restauração do absolutismo no lugar do regime liberal de Dom João VI, em 1823, mas não sem antes haver casado com Luísa Midosi, uma jovem de apenas catorze anos. Foi no exílio que entrou em contato com a literatura romântica de Lord Byron e Walter Scott. Mais tarde, em Paris, já sem a esposa, que regressara a Portugal – onde estava impedido de entrar –, foi trabalhar na livraria Aillaud e, em 1825, publicou na Cidade Luzo o poema “Camões”, considerado obra fundadora do Romantismo português.

Um ano depois, após a morte de Dom João VI, Almeida Garrett foi anistiado e regressou à pátria com os últimos emigrados, dedicando-se ao jornalismo. Fundou o diário O Português (1826-1827) e o semanário O Cronista (1827). Entretanto, a estada em Portugal não duraria muito, e já em 1828, com o regresso do rei absolutista Dom Miguel, teve de partir. Ainda nesse ano, perdeu a filha recém-nascida. Nesse período, voltou à Inglaterra, onde ficou até 1831, indo depois para a França, quando se integrou a um batalhão de caçadores. Em 1832, rumou para os Açores, engajado na expedição comandada por Dom Pedro IV. Mais tarde, Garrett foi chamado para a Secretaria de Estado do Reino.

Nesse mesmo ano, participou da expedição liberal que desembarcou no território do Mindelo e ocupou o Porto, onde foi reintegrado como oficial da Secretaria de Estado do Reino, acumulando a função com o trabalho na comissão formada para a criação dos Códigos Criminal e Comercial. Em novembro, partiu para uma missão a várias cortes europeias, mas a missão foi dissolvida em janeiro do ano seguinte, e Almeida Garrett ficou abandonado na Inglaterra, de onde seguiu para Paris a fim de se encontrar com sua esposa. Foi apenas com a ocupação de Lisboa, em
julho de 1833, que conseguiu apoio para o seu regresso.

Em novembro desse ano, foi nomeado secretário da Comissão de Reforma Geral dos Estudos e, três meses depois, cônsul-geral e encarregado de negócios na Bélgica, onde leu Schiller, Goethe e Herder, mas foi, novamente, abandonado pelo governo. Garrett estava em Paris, em tratamento de saúde, quando foi substituído sem aviso prévio na embaixada belga. Nomeado embaixador na Dinamarca,
foi demitido antes mesmo de abandonar a Bélgica. Em 1836, regressou a Portugal e separou-se de Luísa Midosi, que em Bruxelas o teria traído.

Os sucessivos abandonos por parte dos governos cartistas – a tendência mais conservadora do liberalismo – levaram-no a envolver-se com o setembrismo, corrente mais à esquerda do movimento liberal, dando assim origem à sua carreira parlamentar, distinguindo-se nos anos 1830 e 1840 como um dos maiores oradores nacionais.

Nessa época, Passos Manuel, um dos políticos mais notáveis da história da política democrática portuguesa, o encarregou de reorganizar o teatro nacional, nomeando-o inspetor dos teatros. Garrett criou, então, o Conservatório de Arte Dramática, da Inspeção-Geral dos Teatros, do Panteão Nacional e do Teatro Normal (atualmente Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa).

Em 15 de julho de 1841, Almeida Garrett atacou violentamente o ministro António José d’Ávila, num discurso sobre a Lei da Décima, o que implicou a sua passagem para a oposição e demissão de todos os cargos públicos. Isso ocorreu porque o povo estava em péssima situação financeira e o governo nada propôs para mudar esse estado de coisas. Para Garrett, e ele deixou claro no discurso, era preciso reduzir as despesas, melhorar a fiscalização, lançar tributos indiretos que não agravassem a situação do povo e, por fim, repartir o que faltasse para pagamento dos proprietários e grandes industriais. E questionou: “Não pagaram nossos pais duas décimas para sustentar a independência do reino contra as invasões francesas? Pois paguemos, agora, o que a cada um tocar para remir a dívida que se contraiu na conquista da liberdade, dívida que faz todas as nossas dificuldades e penúrias”. E termina responsabilizando o governo pela situação do povo.

Em 1843, eleito deputado nas eleições para a nova Câmara dos Deputados cartistas, como toda a esquerda parlamentar, recusou qualquer nomeação para as comissões parlamentares. No ano seguinte, atacou com veemência o governo liberal de Costa Cabral, comparando-o ao absolutista.

Foi em 1843 que começou a publicar, na Revista Universal Lisbonense, as Viagens na minha Terra, descrevendo a viagem ao vale de Santarém. Anteriormente, em 6 de maio, tinha realizado no Conservatório Nacional a leitura do auto Frei Luís de Sousa, peça que renovou a dramaturgia portuguesa.

Continuando a sua oposição ao cabralismo, Garrett participou da Associação Eleitoral dirigida por Sá da Bandeira, assim como das eleições de 1845, onde foi um dos quinze membros da minoria da oposição na nova Câmara. Em 17 de janeiro de 1846, proferiu um discurso brilhante, no qual considerava a minoria como representante da “grande nação dos oprimidos” e, em 7 de maio, finalmente pediu a deposição do governo, sua demissão, e em junho, a convocação de novas Cortes. Com a revolução da Maria da Fonte e a Guerra Civil da Patuleia, Almeida Garrett, que apoiava o movimento, teve que se esconder, reaparecendo com a assinatura da Convenção do Gramido.

Com a vitória cartista e o regresso de Costa Cabral ao governo, Almeida Garrett ficou afastado da vida política até 1852, o início da Regeneração, quando como político foi consagrado oficialmente: foi nomeado para a redação das instruções ao projeto da lei eleitoral, como plenipotenciário nas negociações com a Santa Sé, para a comissão de reforma da Academia das Ciências, como vogal na comissão das bases da lei eleitoral, e na comissão de reorganização dos serviços públicos, além de vogal do Conselho Ultramarino, e de estar encarregado da redação do que seria o Ato Adicional à Carta. Em 25 de junho foi agraciado com o título de Visconde.

Apesar da atividade política e legislativa, Garrett nunca deixou de trabalhar na sua obra. Escreveu: Um auto de Gil Vicente, em 1838; Dona Filipa de Vilhena, em 1840; O alfageme de Santarém, em 1842; e, em 1843, publicou Frei Luís de Sousa, todos para o teatro; o romance Viagens na minha Terra, em 1845; e os livros de poesia As flores sem fruto, 1845, e Folhas caídas, que data de 1853.

Importa dizer agora que Garrett foi um grande sedutor, um homem elegante, que, inclusive, ditava moda em Lisboa. Talvez a melhor definição fosse a de um homem fatal, “príncipe dos salões mundanos”. Separado da esposa, Luísa Midosi, apaixonou-se por Adelaide Deville, que morreu em 1841, e com ela teve uma filha, Maria Adelaide. A partir de 1846, passou a viver com a Viscondessa da Luz, Rosa Montufar Infante, musa das Folhas caídas, obra que causou grande escândalo quando publicada.

Voltando à sua atividade política, foi eleito, em 1852, novamente deputado e foi, por pouquíssimo tempo, ministro dos Negócios Estrangeiros, quando deixou o governo regenerador. A sua última intervenção no Parlamento foi em março de 1854 em um fulminante ataque ao governo do liberal Rodrigo de Fonseca Magalhães.

Dedicou-se, então, à escrita, iniciando um novo romance, Helena, que não chegou a concluir, pois, em 9 de dezembro de 1854, morreu de câncer.

A obra: a construção da nova literatura

A introdução da nova literatura – com o poema “Camões” – foi uma revolução comparável, pelas consequências radicais e pela ruptura com o passado, à revolução de 1832-1840. Em “Nota ao Conservatório”, comentário que escreve e publica com o auto Frei Luís de Sousa, afirmava o escritor: “A escola romântica foi tão manifesta reação contra os vícios e abusos ultraclássicos, tão e tal perfeita como o liberalismo contra a corrupta monarquia feudal”.

Não há, entretanto, naquele momento, como exaltar
os valores do presente português. Nesse sentido, o primeiro Romantismo é marcado por uma espécie de revolta contra o estado de coisas do presente e, ao mesmo tempo, por uma atitude escapista que coloca nas mãos de Deus a possibilidade de resolver a prepotência, a desigualdade e as grandes injustiças sociais. Na verdade, era projeto garrettiano e de Alexandre Herculano “criar” uma cultura nacional baseada em premissas históricas passadas, que se revelasse como herdeira das melhores tradições do país. Uma literatura portuguesa nova, de regresso às tradições, com o que de melhor caracterizasse o povo luso.

Viagens na minha Terra constitui verdadeiras impressões de viagem e digressões de toda a ordem, bem dentro do modelo estabelecido por Sterne e Maistre, uma vez que misturam-se, na obra, a viagem real que Garrett fez de Lisboa a Santarém, e a narração novelesca em torno de Carlos, Frei Dinis e Joaninha. É como Almeida Garrett desvenda a situação política e social de Portugal, colocando frente a frente o Frei Dinis, representante do velho Portugal, bsolutista, e Carlos, representante da renovação e do liberalismo. O fracasso de Carlos é, nesse sentido, o do país que acabava de sair da guerra civil entre miguelistas e liberais e que dava os primeiros passos na modernização. É também através do conflito íntimo de Carlos – incapaz de fidelidade, uma vez que se apaixona intensamente por várias mulheres – que Garrett faz uma análise rigorosa do que há de convencional, verdadeiro e falso na vida sentimental, cuja consequência é uma espécie de remorso marcado pelo ceticismo. Carlos não crê no amor, como não crê na revolução política, onde o poder do Frade é substituído pelo do Barão capitalista. Aliás, Garrett, o poeta, como Carlos, também é um homem fatal, perseguido pelo remorso e, simultaneamente, vítima da mulher fatal, bem na linhagem de Musset e Byron.

Pode-se pensar que foi a partir dos vintistas que a liberdade entrou na história e na literatura portuguesa de que Almeida Garrett é expressão. Aí, o sangue português, o sensualismo, o amor e uma certa paixão ingênua e espiritual da aventura e da cavalaria tornam-se eixos da obra garrettiana, num estilo voltado para a linguagem falada. É como, enfim, inicia com Viagens na minha Terra a moderna prosa portuguesa, e assina, definitivamente, seu nome – Almeida Garrett – como um renovador da literatura, sua marca na história da literatura lusa.

* É doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Leciona Literatura Portuguesa e Luso-Africana na UFRGS. Organizou diversos volumes de poesia portuguesa e é autora de vários livros de ficção. (N.E.)

Mais livros de Almeida Garrett


Opinião do Leitor

Lorenzo Bandinelli
Gravataí - Rio Grande do Sul

excelente texto, tendo sido peça chave do meu estudo sobre Garret, obrigado :D

12/04/2021

Agatha

Rosa dos Santos do Nascimento
Sorocaba - SP

Este texto foi de grande relevância para mim para pesquisa e trabalho acadêmico.

07/12/2014