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O desafio de traduzir um crime sem desvendá-lo

04/05/2010

- Por L&PM Editores

O jornalista Carlos André Moreira, um dos autores de A história dos Grenais, é também responsável pela tradução de alguns dos títulos de Agatha Christie para a Coleção L&PM POCKET. O mais recente, O mistério Sittaford, é o tema da entrevista concedida por ele para o site da editora.

L&PM – Qual é o tipo de conhecimento prévio necessário para traduzir textos da Agatha Christie?

Carlos André Moreira – Deve-se ter uma noção de que tipo de sociedade ela descreve em seus livros. Embora estruturados como histórias de detetive com um enigma a ser desvendado – às vezes um leitor perspicaz até consegue se antecipar ao fim do livro – os romances de Agatha Christie são ambientados na rígida sociedade inglesa de seu tempo. Não rígida em termos de moral, mas de estratificações sociais, algo que ela por vezes retrata por meio dos diálogos e do universo vocabular dos personagens. Ter uma noção desse tipo de sociedade, que mistura em igual medida a modernidade urbana e uma aristocracia rural decadente, é recomendável.

L&PM – O escritor Sergio Faraco disse, em uma palestra, que na tradução é preciso trair para ser fiel. Ou seja, é preciso subverter o texto para expressar o que o autor está dizendo no texto original. Isso se aplica à tradução de textos da Agatha Christie?

C. A. – Aplica-se, mas em menor grau que em textos como os do próprio Sergio Faraco ou os de Mario Arregui, que Faraco já traduziu. Agatha Christie tem uma prosa muito mais funcional, uma vez que ela constrói seus livros a partir da trama. Não chega a haver, também, em suas páginas, discussões alentadas sobre as grandes ideias de seu tempo. Agatha Christie escrevia romances que eram inovadores e cativantes dentro de uma estrutura bastante demarcada, a do romance policial, e esse campo, embora repleto de traições no enredo, não costuma exigir do tradutor muitas traições na forma.

L&PM – Há algum tipo de cuidado específico na tradução para manter o clima de mistério que circunda o crime?

C. A. –  Sim, há elementos que Agatha Christie semeia ao longo do livro que devem produzir o tipo certo de ressonância quando a autora voltar a eles na explicação final ao fim do livro. Ao mesmo tempo, como não me entrego à tradução sem ter feito uma leitura prévia, traduzo sabendo quem é o culpado, e por isso tomo especial cuidado nos termos que a autora usa para defini-lo - para não entregar muito cedo o jogo.

L&PM – Na página 68 você usa a frase “quem realmente fez essa lambança?” e na página 100 um “fala sério?”. No uso corrente, essas expressões podem assumir se não um sentido, uma intenção diferente. Como foi a escolha de expressões como essa na tradução?

C. A. – Em O mistério Sittaford, Agatha Christie lança mão de alguns dos recursos de que falei anteriormente, especialmente dotar a fala de determinados indivíduos de uma coloquialidade ou uma estranheza  que são reveladores de sua classe social e do matiz de seu caráter. O mordomo da vítima de assassinato, marinheiro de origem, tem uma fala simplória e de sintaxe arrevesada. Já o jornalista que acompanha o caso (e que profere a frase da página 68 com o "essa lambança") é um sujeito bastante adaptável, mas de uma absoluta informalidade. Enquanto ele fala com as pessoas a quem quer persuadir a lhe dar informações, ele usa expressões mais neutras, mas em seus monólogos interiores ou ao falar com a sua parceira de investigação, é mais solto, o que justificava o uso de uma expressão bastante coloquial equivalente. Já no caso de "fala sério" seu uso não é o da gíria que se conhece hoje, e sim o da norma: a moça está perguntando se podia acreditar nas palavras da mulher com quem estava falando.

L&PM – Há uma preocupação em manter o estilo da autora?

C. A. – Sim, mas sem exageros. Por ter um estilo, como já comentei, estritamente funcional, Agatha Christie é dada, no original, a repetições de pronomes, de termos numa mesma frase e mesmo ao uso recorrente dos mesmos verbos para descrever as ações de seus personagens. Eles usam com frequência "nod" (fazem um meneio de cabeça, normalmente de anuência) ou "look sharply" ou "look keenly" (lançam um olhar agudo e/ou penetrante). São expressões bem marcadas que, se repetidas constantemente ao longo do livro, provocam estranheza. Nesse caso, foi necessário buscar sinônimos para evitar essa estranheza.