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Caderno Prosa & Verso do jornal O Globo entrevista Chan Koonchung

13/02/2012

- Por L&PM Editores

ANOS DE FARTURA E CENSURA

Autor de romance distópico proibido na China critica consumismo atual do país

Por Leonardo Cazes*

A China se tornou a maior potência mundial e, agora, dita as ordens no planeta. Comprou até símbolos do capitalismo, como a rede Starbucks. Feliz com a prosperidade econômica, o povo nem se lembra de que um mês de 2008 foi apagado da História. O cenário futurista foi criado por Chan Koonchung em “Os anos de fartura — China 2013” (L&PM). O autor surfa no sucesso dos livros sobre distopia e traça uma alegoria da sociedade chinesa contemporânea. “O Estado usa o consumo como uma forma de censura”, diz o escritor, que não teve o livro lançado em Pequim, onde vive. “Abri mão do imenso potencial do mercado chinês por liberdade literária”, explica.

 

No livro, você apresenta uma China futurista, onde as pessoas vivem anestesiadas pela prosperidade. Isso já acontece? Que aspectos do livro você observa no país hoje?

CHAN KOONCHUNG: Alguns chineses mais velhos estão realmente satisfeitos por viverem em uma era de abundância. Muitos estão encantados pelo tipo de felicidade propiciado pelo consumo, e ninguém quer voltar aos tempos de escassez. Mas duvido que a fartura do consumo deixará todos satisfeitos — por exemplo, alguns ficarão infelizes por não terem dinheiro para consumir, enquanto outros gritarão por liberdade política. No entanto, vejo uma tendência geral de aceitar a substituição da liberdade política pela prosperidade.


Existe alguma relação entre sua história e a de Lao Chen, o protagonista do romance?

Nós dois somos escritores chineses que ficaram muito tempo fora do continente, mas voltaram a viver em Pequim. Com certeza temos algumas coisas em comum e, para mim, é mais confortável usar um expatriado como protagonista. Mas a carreira de Lao Chen e a experiência pessoal dele são completamente diferentes das minhas.


Qual foi sua principal motivação para escrever o livro?

Em 2008, percebi que havia uma diferença grande entre a percepção que muitos intelectuais chineses tinham do país e a realidade que eu via nas ruas. Ao mesmo tempo, notei que não havia muitas histórias de ficção que tivessem capturado com sucesso esse novo retrato do país. Então, eu resolvi tentar.


As reformas do governo Deng Xiaoping deram início a um processo de liberalização econômica que não foi acompanhado pela abertura política. Qual o impacto disso na sociedade chinesa hoje?

A China cresceu de maneira espetacular no seu modelo de capitalismo estatal iniciado por Deng Xiaoping. Contudo, sem uma reforma política, o partido comunista continua infestado de oficiais corruptos e seus amigos. Isso não significa que eles vão cair; significa apenas que não haverá justiça nem um campo aberto para disputa política.


No livro, o controle do Estado sobre a vida dos cidadãos é muito forte. Qual é o limite das liberdades individuais atualmente no país?

O controle da liberdade de expressão e a perseguição a dissidentes continuarão ou mesmo piorarão à medida que a China ficar mais rica. Agora o país pode se dar ao luxo de resistir às críticas da comunidade internacional sobre direitos humanos. Há um personagem no livro que diz que a China hoje tem 90% de liberdade, o que mais ele pode querer? É um país bem mais livre hoje do que há 20 anos, com exceção da liberdade política.


Você faz, no romance, uma relação entre consumo e alienação. De que maneira se dá esse vínculo? Você acredita que há uma fascinação das pessoas com a prosperidade do país?

As pessoas sabiam que eram privadas de informação e que seu acesso a ela era controlado nos primeiros 40 anos de governo do partido comunista. Agora, o partido incentiva o entretenimento e o consumo. Se você entrar no site chinês da Amazon, encontrará milhares de títulos. Há livros para todos os gostos. Por que então gastar sua energia para procurar o que foi proibido? O Estado usa o consumo como uma forma de censura. A oferta é enorme, mas controlada de modo a incentivar a memória seletiva e a ignorância política.


Você também discute a relação entre memória e esquecimento na China. No livro, um mês é apagado da História e ninguém se pergunta sobre o que aconteceu. No país, diversos fatos históricos passaram por revisão oficial do governo. Isso continua a acontecer?

Ao tentar mudar sua própria imagem para o povo, o Partido Comunista Chinês promove uma confusão entre o que as pessoas se lembram do passado e a maneira como ele é apresentado hoje, em versões censuradas. O partido acredita que manipular sua imagem o ajuda a se manter estável no poder. Para isso, ele usa também outras ferramentas, como sua grande estrutura e mesmo a violência.


Você vive em Pequim, mas o livro só pôde ser lançado em Hong Kong e Taiwan. Como é o seu dia a dia?

Vivo em Pequim desde 2000. Quando escrevi o livro, sabia que ele não seria publicado na China continental, apesar de querer que fosse lido por intelectuais amigos meus. Deliberadamente, eu abri mão do imenso potencial do mercado chinês por liberdade literária. Depois que publiquei em Hong Kong e Taiwan, tive que levar cópias na minha mala para dar aos meus amigos em Pequim. Então algumas pessoas colocaram o texto na íntegra na web, driblando o sistema de segurança da internet chinesa. Foi assim que ele se difundiu pelo país, por meio de downloads gratuitos. Nenhuma autoridade nunca veio até mim. Eu vivo uma vida discreta de escritor.


O livro pode ser classificado como um romance distópico. Esse filão tem alcançado grande sucesso. Por quê?

Desde que coloquei a história no futuro não tão distante de 2013, alguns críticos o chamaram de romance distópico, e ele foi comparado aos livros “1984”, de George Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Eu li ambos quando estava no colégio e os reli no ano passado. Então eu vi que estava mais ligado a eles do que imaginava, mas meu romance é sobre a China atual, não uma distopia distante.

 

*Leonardo Cazes entrevistou Chan Koonchung por email e esta matéria foi publicada originalmente no Caderno Prosa & Verso do dia 11 de fevereiro de 2012