15/04/2010
- Por J.A. Pinheiro Machado
Nenhum personagem da literatura apreciou mais do que Maigret a boa mesa, a boa comida e a boa bebida. Como escreveu Gilberto Braga, o mais encantador nas histórias do Inspetor Maigret, ¾ às vezes mais do que a história em si, ¾ é o ambiente, o cenário, as ruas com seus tipos interessantes, os cafés enfumaçados, as fartas refeições regadas a bom vinho ou a sórdidas canecas de cerveja...
As duas memórias de Maigret que Anonymus Gourmet carrega são remotas, mas intensas: misturam essas aquarelas vivas da vida quotidiana e o texto primoroso com que elas foram pintadas. Tempos do ginásio, na aula de francês, havia a adorável obrigação de ler L’Affaire Saint-Fiacre, Le chien jaune e outras pérolas no original: livros tão bem escritos, redigidos com tanta clareza que, jovens com pouco mais de dez anos, com três semestres de francês, munidos de um pequeno dicionário, eram capazes de ler, compreender e se comover. Era inevitável a impressão que, em vez de tratados tediosos ou de Anatole France, talvez por engano ou quem sabe por algum sortilégio inexplicável, as professoras ofereciam misteriosos brinquedos de armar na hora dos estudos. Do L’Affaire Saint-Fiacre, tantos anos depois, ficou para Anonymus Gourmet algo parecido com a emoção de Gilberto Braga: a atmosfera misteriosa, o frio terrível do amanhecer na velha abadia, o perfume de café com pão rústico de campanha...
Georges Simenon, o pai do Maigret, um belga que reconstruiu seu mundo imaginário e sua cidadania na velha Paris, amava cerveja, calvados e a mesa farta. Foi um escritor prolífico que escrevia com grande rapidez e, segundo confessou, cortava de forma impiedosa as protuberâncias do texto: “gasto mais tempo cortando excessos do que escrevendo”. Durante muitos anos chegou a ser o escritor que mais vendeu livros no mundo em todos os tempos, mais do que a Bíblia, mais do que Lênin e Mao Tsé Tung, os best sellers absolutos do anos 1970. Aliás, Mao foi leitor fervoroso de Simenon.
A boa notícia é que Maigret, pela terceira vez, está de volta, em português. Primeiro, 25 anos atrás, o insubstituível Sergio Lacerda lançou, pela Nova Fronteira, grande parte dos romances e novelas das aventuras do Inspetor Maigret. Essa série foi relançada em co-edição Nova Fronteira-L&PM há seis anos. Agora, a L&PM lança inéditos preciosos: em dois volumes bem nutridos Todos os contos de Maigret, e em edição de bolso, a coleção completa das obras de Georges Simenon, incluindo as histórias mais recentes (em que o Inspetor foi promovido a Comissário Maigret), com traduções de texto irretocável. É a volta do mundo fascinante de cheiros, sabores, mistérios e pequenos enigmas quotidianos criado por Simenon. Inclusive com o perfume de café e pão rústico de campanha do Caso Saint-Fiacre.
*Esse texto foi publicado originalmente no caderno Gastronomia de Zero Hora de 16/4/2010.
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